Blog editado por Antonio Navarro

EXPRESSÃO COMUNISTA é um espaço para difusão cultural e debates sobre a conjuntura política.

domingo, 21 de novembro de 2010

Vitória de Dilma é garantia de estabilidade na América do Sul




O papel desempenhado hoje pelo Brasil no contexto mundial, sua liderança na América Latina e as inovações da política externa do governo Lula, imprimindo posição mais soberana frente aos países economicamente hegemônicos, são temas destacados pelo cientista político e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Sebastião Carlos Velasco Cruz.

Especialista em Ciência Política, com ênfase em Economia Política e Relações Internacionais, nesta entrevista, Velasco explica porque “a vitória da presidenta Dilma Rousseff é uma garantia de estabilidade política na América do Sul”. Uma previsão feita com base nos resultados da política internacional praticada nos últimos oito anos pelo governo Lula, do qual, Dilma representa a continuidade.

Em sua análise, o professor da Unicamp -- pesquisador do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU) -- avalia, ainda, as inovações da política externa brasileira, a relação do Brasil com os Estados Unidos, a importância do MERCOSUL; e alerta, sobretudo, para a necessária postura soberana conquistada pelo país frente a um contexto internacional cada vez mais multipolar.


Entrevista concedida pelo Professor Velasco (UNICAMP) a José Dirceu:


[ Dirceu ] Velasco, qual a inovação da política internacional adotada pelo governo Lula? Em quais aspectos ela se difere, por exemplo, da postura do governo anterior?


[ Velasco ] Até a chegada do governo Lula, em linhas gerais, a política externa do governo FHC era regida pela ideia de que o Brasil, país continental, poderia almejar um papel relevante, porém, modesto no cenário internacional. Isso tinha como implicação um perfil muito baixo no relacionamento com o mundo, em especial com os Estados Unidos. Privilegiava a diplomacia comercial e adotava uma atitude muito cautelosa na defesa dos interesses do país. A crítica que a oposição e o PT faziam à essa política incidia nestes pontos.

A política externa do governo Lula mostrou sua diferença antes mesmo de o governo se constituir, já na resposta dada à crise venezuelana: Marco Aurélio Garcia (assessor especial de relações internacionais da Presidência da República) viajou ao país como emissário pessoal do presidente eleito. Houve, portanto, um apoio para dar conta daquela situação que ameaçava a Venezuela com o espectro da guerra civil. Logo depois, a atitude afirmativa da política externa do governo Lula expressou-se na posição do Brasil durante a crise que culminou na invasão do Iraque.

A novidade não foi tanto a condenação deste ato de violência. Isso o ex-presidente Fernando Collor tinha feito em 1991, quando da Guerra do Golfo. O Brasil não a apoiou, ao contrário da Argentina. O que houve de inovador no governo Lula foi a desenvoltura da diplomacia brasileira e da atuação pessoal do presidente, que participou ativamente da frente internacional de oposição à guerra.

Como bem disse o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, o Brasil não tem a alternativa de ser um país normal, uma potência média como a Espanha ou a Holanda. Pelo seu tamanho, população, dotação de recursos, ou ele supera suas enormes disparidades sociais – e ao fazê-lo passa a ocupar no mundo um espaço proporcional a seu tamanho -, ou ele não supera esses entraves e se transforma em um país problemático.

[ Dirceu ] Como você avalia a relação EUA e Brasil, em especial, a questão dos tratados de livre comércio?


[ Velasco ] Historicamente, desde o século XIX, o Brasil mantém uma boa relação com os EUA. Em alguns momentos, como nos governos de Getúlio Vargas e do general Ernesto Geisel marcamos nossas diferenças. No caso do Getúlio Vargas, inclusive, como forma de encaminhar uma negociação favorável aos interesses brasileiros. A implantação da indústria brasileira, por exemplo, é resultado disso.

Na América do Sul, os EUA sempre viram o Brasil como um país de grande influência. Na realidade, o problema da relação entre os dois países não é a relação propriamente dita entre eles, mas a relação dos EUA com o mundo. Desde o final do século XIX, os EUA se voltaram para fora com um impulso muito grande, ocupando espaços e caminhando rapidamente para o exercício de uma posição hegemônica, condição que conquistam efetivamente após a II Guerra Mundial. No sistema de alianças que Washington montou nesse período, o Brasil é um país que tem um papel localizado, regional. Isso ficou muito evidente durante o golpe de 64, e no que se passou daí em diante.

O estremecimento que houve nos anos 70, com o Geisel e a política externa do seu governo – o “pragmatismo responsável” conduzido pelo chanceler Antônio Azeredo da Silveira – se deu porque o Brasil começou a se afastar do script e passou a exibir uma pauta de conduta autônoma. O episódio emblemático desta postura foi o reconhecimento da independência das colônias portuguesas na África.

O alcance desses conflitos, porém, era limitado. Apesar de ocasionalmente marcadas por problemas, nossas relações com os EUA nunca chegaram perto de um rompimento, ou de uma situação de hostilidade. Esse é o contexto no qual se dá o episódio do surgimento da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA).

A questão ALCA

ImageA ALCA surge nos anos 1990, quando o Brasil estava realizando um movimento de enorme importância cujo resultado foi a constituição do MERCOSUL. Com ele, houve uma inflexão no relacionamento sempre delicado com a Argentina e tivemos a transformação de uma relação problema em uma aliança capaz de alavancar os dois países no plano internacional e, ao mesmo tempo, contribuir para a consolidação da transição democrática que estava em curso em ambos. Esse processo, como se sabe, foi muito mais complicado na Argentina do que no Brasil.

Então, quase que simultaneamente o primeiro Bush, presidente George Bush (pai), lançou a iniciativa, a ALCA, para as Américas: a proposta de se criar no hemisfério uma grande área de livre comércio que iria do Alaska à Patagônia. A diplomacia brasileira percebeu claramente essa iniciativa como uma ameaça ao seu modesto – ainda que importante – projeto de integração no Cone Sul.

Em 1994, essa ideia se converteu num acordo formal, assinado por todos os presidentes que participaram da reunião de cúpula em Miami. Desde então, o governo brasileiro passou a negociar a ALCA, ainda que com muitas reservas. Este processo termina em 2005, com a evidência de que ele não era viável e - naquilo que poderia ser - não interessava mais a nenhuma das partes. Então, a ALCA é uma carta que saiu do baralho.

[ Dirceu ] A ALCA começou no governo FHC e terminou no governo Lula. Quais as diferenças quanto a condução da questão nos dois governos?

[ Velasco ] Durante esse longo processo de negociações, há uma nítida diferença de comportamento entre o governo Fernando Henrique Cardoso e o governo Lula. A diplomacia brasileira nunca ficou encantada com a ideia da ALCA, mas nunca imaginou a possibilidade de dizer não à proposta. No governo Lula, a questão da ALCA já se apresentou de uma forma completamente diferente. Ela tinha sido tema da campanha eleitoral e houve mobilizações importantes da sociedade brasileira, com abaixo assinados contra a sua instituição.

Por outro lado, a América Latina havia se transformado enormemente. Já tínhamos Hugo Chávez na Venezuela, a crise argentina, enfim, as condições para a realização do que os EUA intentavam com o projeto da ALCA, em meados da década (2005), já não estavam mais presentes.

Brasil e Argentina: da rivalidade à aliança

[ Dirceu ] Qual a importância do MERCOSUL para o Brasil e para o continente?

[ Velasco ] O MERCOSUL é uma iniciativa de enorme importância, não apenas pelo seu significado econômico, mas pela mudança no relacionamento político entre o Brasil e a Argentina que se cristaliza no bloco. A necessidade imperiosa desta mudança já se fazia sentir ao longo dos anos 70.

Nessa época, o renomado cientista político Hélio Jaguaribe escreveu um trabalho sobre a inserção do Brasil no mundo, em que dizia exatamente que a condição para o nosso país ampliar seu grau de liberdade no relacionamento com os EUA era a transformação da rivalidade histórica com a Argentina em uma aliança sólida.

A importância do MERCOSUL, então, é enorme. A América do Sul hoje é completamente diferente do que era no passado. Os planos, os cenários de guerra com que as Forças Armadas de um lado e do outro trabalhavam não existem mais. No plano comercial e econômico, a Argentina é um dos principais parceiros do nosso país.

O MERCOSUL viveu um problema muito grande, que tem relação direta com as crises financeiras no final da década de 90 - a desvalorização do Real (1998), sobretudo, e mais adiante a crise dramática do peso argentino. Essas crises levaram os governos a tomar uma série de medidas defensivas. Mas o MERCOSUL continuou vivo e é o elemento decisivo, a mola propulsora, a plataforma de lançamento de um projeto maior que é a integração sul-americana.

O contrapeso da China

[ Dirceu ] Em relação a Ásia e a China, como você vê essa região e esse país hoje no mundo e o envolvimento deles com os EUA?


[ Velasco ] A China é a grande novidade da virada do século. É um país que se constrói como um contrapeso à potência ou potências hegemônicas. Terminada a Guerra Fria, os EUA detiveram não só uma posição de supremacia inconteste no sistema financeiro e uma base industrial muito forte, mas também uma predominância militar indiscutível.

Essa situação deu margem a um enorme debate, logo no inicio dos anos 90, após a Guerra do Iraque. Tratava-se de saber se essa situação era circunstancial ou se era uma estrutura permanente, se caminharíamos para um processo de desconcentração do poder mundial. Isso que era objeto de especulação nos anos 90, no final da primeira década do século XXI, parece uma questão superada.

Os EUA continuam sendo o país predominante, mas o sistema caminha para uma configuração multipolar e o pólo que cada vez mais ascende como o contrapeso é a China. De saída, pelo seu dinamismo econômico fora do comum, nunca visto. Nós vivemos algo parecido no Brasil, mas a China é um país muito maior, com uma população de mais de um bilhão de habitantes. Os números absolutos são incomparáveis.

Há alguns anos, li em um estudo do embaixador Amaury Porto de Oliveira, grande conhecedor da China, que o número de trabalhadores sazonais – que saem do campo e circulam pelo país em busca de trabalho – era de cerca de 80 milhões. Uma coisa impressionante. É como se fosse um México todo. Então, os números absolutos são outros.

O Brasil cresceu muito, a taxas comparáveis (à China), em certo período. Mas a China vem mantendo taxas de crescimento “milagrosas” há décadas. Isso envolve transformações estruturais muito grandes. A China integra a economia asiática, é o principal parceiro da Índia, Coréia, mesmo do Japão etc. Mas não é só isso, tem uma face financeira deste crescimento – fundos soberanos, aplicação em papéis americanos, investimentos em ativos reais, etc. Então, entre os dois países, EUA e China, existe uma relação de complementaridade e de tensão neste campo.

Agora, a China tem uma enorme dependência enérgica e investe pesadamente no mundo todo - na África e na América Latina - em busca do que é necessário para a alimentação deste sistema econômico tão dinâmico. O problema do relacionamento da China com os EUA e a Europa é que ela não faz parte do sistema de segurança montado pelos EUA.

O Japão também cresceu de forma extraordinária em passado não muito distante. Só que o Japão não apenas fazia parte do sistema de alianças dos EUA, como mantinha tropas americanas em seu território. Então, o dinamismo econômico do Japão não tinha o mesmo impacto, nem o significado geopolítico da expansão chinesa.

Como a China não está na órbita política dos EUA, o Estado chinês não pode apostar no mercado para regular o abastecimento dos recursos essenciais a seu sistema econômico. Porque os circuitos desse mercado são protegidos pela força militar da potência hegemônica, e nada garante que essa força não venha a se voltar contra a China em dado momento. Então, o tratamento da questão energética pela China não é e não pode ser estritamente econômico. As considerações de segurança se fazem presentes nas relações comerciais e nos investimentos. Os chineses tratam de estabelecer relações políticas com seus parceiros, e, mais recentemente, preparam-se para garantir militarmente as rotas marítimas vitais para a sua economia.

Forças progressivas na AL


[ Dirceu ] Depois de duas décadas de vitórias eleitorais, de avanços que se expressaram nas rebeliões e refundações com Constituinte da Venezuela, Equador, Bolívia; de avanços políticos e institucionais na Argentina, Brasil, Uruguai e Paraguai, nós tivemos o golpe de Honduras, a eleição de Juan Manuel Santos (Colômbia) e de Sebastián Piñera (Chile). Como você vê essa realidade combinando isso com a política agressiva norte-americana? Como vê as vitórias e o período de mudanças progressistas e essa nova correlação de forças que vai se estabelecendo?

[ Velasco ] Eu chamaria atenção, em primeiro lugar, para o caráter contraditório do desenvolvimento. Houve a vitória da direita no Chile depois de 20 anos do governo da Concertación. Mas ela era uma esquerda muito comportada e distanciada das experiências que você citou e que marcaram esta década na América Latina. Além disso, o Piñera fez um movimento de tomada de distância daquilo que foi o elemento definidor das políticas de direita (ditadura Pinochet, principalmente), ao reivindicar o voto da população chilena, que em sua grande maioria apoiava a presidenta Bachellet.

Tenho a impressão de que no Chile houve de um lado, uma condução prudente da oposição de direita e, de outro, um desarranjo na Concertación que impediu que uma presidenta com grande popularidade se envolvesse na campanha eleitoral. Ela se manteve à margem e só no final do 2º turno se manifestou.

A Bolívia viveu uma crise que quase levou o país a uma guerra civil, no final de 2008. Ela foi contornada com a ajuda muito importante de um mecanismo diplomático criado pela diplomacia brasileira: a União das Nações da América do Sul (UNASUL). Na sequência, o presidente Evo Morales vence plebiscitos e depois se reelege com grande maioria.

Então, temos situações muito diversas. Mesmo a Colômbia é uma interrogação, porque o (presidente Joaquim Manuel) Santos não é exatamente o (ex-presidente Álvaro)Uribe. Vamos ver como as coisas evoluem. A decisão da Suprema Corte colombiana em relação às bases militares dos EUA no país foi muito importante.

A impressão que tenho é que a América do Sul está em movimento e eu não vejo com pessimismo o que acontece. As preocupações maiores da diplomacia americana não estão voltadas para este subcontinente. Os EUA têm problemas muito graves para tratar no Oriente Médio, no Afeganistão, sem falar dos seus problemas internos. Mas essa dinâmica – integração econômica e intensificação das comunicações políticas na América do Sul – desperta alguma inquietação.

O papel militar na política externa

[ Dirceu ] Como você vê a relação entre poder militar no Brasil e a política externa?

[ Velasco ] Houve uma transformação muito grande do papel militar na política brasileira. Desde a Proclamação da República, os militares foram elementos decisivos na condução dos assuntos internos. Exerceram esse papel, aqui e em outros lugares, tomando posição em relação aos acontecimentos da política nacional, estabelecendo projetos e eventualmente dando golpes.

Após a transição, sobretudo depois da Constituinte, essa dimensão da relação militar e civil foi contida. Nós passamos por crises importantes no país e pela primeira vez os militares não estiveram presentes como um fator relevante.

A minha percepção – embora não possa afirmar, pois não faço pesquisa sobre o tema – é que os militares perceberam claramente que estamos no caminho do fortalecimento do Estado nacional, que tem como premissa a promoção social e a retomada do crescimento. Esta tarefa o governo vem realizando muito bem nesses últimos 8 anos. Isso é algo que casa com suas expectativas.

[ Dirceu ] Qual sua avaliação sobre a posição brasileira em relação ao Irã? O que você diria da sentença de apedrejamento aplicada contra Sakineh?

[ Velasco ] O que há no Irã e também no Afeganistão é uma interpretação distorcida da lei islâmica que para alguns tem essa implicação incompatível com qualquer noção minimamente aceitável de convivência humana no mundo moderno. A atitude do governo brasileiro foi de se manifestar contra o ato de apedrejamento. A opinião pública brasileira e de quase todo o mundo repudia essa violência.

O que é importante dizer a este respeito é que não é no Irã apenas que há violações e restrições à liberdade em geral, ocorre a discriminação contra a mulher. Basta pensar na Arábia Saudita. Há claramente, neste caso, o fato deplorável que é a utilização do escândalo como peça de uma campanha que é muito anterior a ele, contra o Irã.

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[ Dirceu ] Como você vê a posição dos EUA contrária à pesquisa nuclear do Irã para fins pacíficos? Por que eles dizem exatamente que não é com esses fins que o país desenvolve essa política?

[ Velasco ] A questão nuclear é muito simples: formou-se desde 1968 um cartel, com o tratado de não proliferação nuclear, um projeto de congelamento do poder mundial, como dizia o Embaixador Araujo Castro. Embora nunca tenha tido a pretensão de desenvolver armamento nuclear, o Brasil sempre o denunciou como desigual e inaceitável.

Agora, esse tratado de não proliferação nuclear envolvia, até mesmo para que fosse aceito, algumas cláusulas. Entre elas, estava o compromisso dos países industrializados de se desarmarem e de transferirem ou facilitarem a difusão do conhecimento da tecnologia nuclear para fins pacíficos ao conjunto dos signatários.

Na prática, isso não aconteceu. O Brasil, desde 1977, teve problemas com os EUA porque o propósito de construir usinas nucleares através de acordos com a Alemanha esbarrava no veto americano. É exatamente este veto, agora, que cai sobre o Irã.

Naquela região extremamente crítica, tensa e nuclearizada – Israel é um país dotado de cerca de 200 ogivas nucleares, se não me engano - os EUA procuram bloquear o programa nuclear pacífico do Irã, alegando que não é pacífico e que não foi provado que era pacífico. O problema de fundo é que, dominado o ciclo do enriquecimento do urânio, a transição do uso pacífico ao militar da energia nuclear é muito fácil. É esta possibilidade que afeta o equilíbrio estratégico na região.

O Brasil, como a Turquia – que negociou um acordo com o Irã, rejeitado pelos EUA - preocupa-se com a escalada, que tem como estágio final o emprego da força, seja por iniciativa de Israel, seja dos EUA. Esta é uma hipótese que as autoridades americanas sempre fizeram questão de afirmar que estava na mesa. No primeiro semestre deste ano, o Brasil e a Turquia fizeram um movimento muito bem sucedido, quando todos achavam que era inviável: a aceitação por parte do governo iraniano de um entendimento que reproduzia quase literalmente os termos da negociação proposta pelos EUA.

Este fato gerou inclusive a carta do presidente dos Estados Unidos, Barack Obama ao presidente Lula. O problema é que a posição brasileira na negociação com o Irã foi muito bem sucedida. A resposta grosseira e brutal do Departamento de Estado americano deve ser interpretada como uma mensagem ao Brasil e à Turquia: “nós não aceitamos este papel que vocês pretendem desempenhar na solução da crise.”

Comunicação: alimento da vida democrática

[ Dirceu ] Queria que você falasse sobre a mídia latinoamericana e sua associação com os golpes de Estado no continente. Grande parte dela cresceu sob a influência e apoio norte-americanos, de corporações daquele país ou até mesmo da CIA, à sombra das oligarquias nacionais ou durante as ditaduras militares. Hoje, a imprensa brasileira, na sua imensa maioria, faz um papel de partido político. E agora, temos essa discussão a respeito da regulação. Como você vê e analisa tudo isso?

[ Velasco ] É uma coisa muito grave. A comunicação é o alimento que mantém a vida democrática. Por isso a censura é a primeira medida das ditaduras. Agora, a censura não é estabelecida apenas pelos regimes ditatoriais. Se você controla os órgãos de imprensa, controla também as informações que circulam na sociedade. Tradicionalmente esse risco era minimizado pela possibilidade de vozes muito diferentes e pela desconcentração do mercado jornalístico. No século XIX os jornais eram contados às centenas.

O problema é que o processo de concentração e centralização se desenvolveu neste espaço também. E agora com as novas tecnologias, mais ainda. Nós não temos apenas grupos com presença predominante na imprensa escrita, mas na TV aberta ou fechada também. No Brasil - e isso vale para outros países - existem hoje 3 ou 4 grupos que controlam os grandes veículos de comunicação. Grupos familiares. Basta pensar na Globo, no Estado de São Paulo, na Folha, na Veja e estamos conversados. Existem diferenças entre esses veículos, mas a convergência é muito forte. Quando eles assumem uma pauta de partido político, e pior, quando agem como partidos sectários, eles distorcem de forma muito nociva, desfiguram o processo democrático.

No Brasil, esse problema é um pouco menor porque temos uma legislação que garante espaço na imprensa e na TV, pelo menos nos períodos eleitorais. Seja como for, esse é um tema crucial na agenda política no Brasil e um enorme desafio para a teoria e a prática democráticas.

Significado da vitória de Dilma Rousseff

[ Dirceu ] O que significa a vitória da Dilma Rousseff e a continuidade da política internacional do governo Lula daqui para frente?


Image[ Velasco ] A melhor forma de responder a esta pergunta é olhar os posicionamentos da oposição sobre os temas da política externa. Os dois partidos (oposicionistas) mais importantes nesse campo, o PSDB e o PFL/DEM, não dão muita prioridade à política internacional, mas os pronunciamentos de seus dirigentes (e dos diplomatas aposentados que circulam em seu meio) são eloqüentes: eles queriam a ALCA, mesmo que em troca de concessões mínimas por parte dos EUA; foram contra a diversificação dos laços comerciais e políticos com os países do Sul, o “Terceiro Mundismo”, na forma depreciativa que usavam para qualificar a diplomacia do governo Lula; e condenaram ruidosamente a disposição brasileira de negociar uma solução aceitável com a Bolívia, em 2006 (na questão do gás).

Eles chamaram repetidamente o governo de fraco por não rejeitar liminarmente os pleitos de países vizinhos – a Argentina e o Paraguai, em particular. Eles votaram contra o ingresso da Venezuela no Mercosul, e fizeram coro com a direita norte-americana no trato que o Brasil deu à crise (golpe militar de julho deste ano) de Honduras.

Tendo em vista esse currículo - bem como as declarações, durante a campanha, de José Serra - o mínimo que se pode dizer é que a vitória de Dilma em 31 de outubro é uma garantia de estabilidade política na América do Sul.

O Brasil, no governo Lula, exerceu um papel de liderança no processo de integração e de aprofundamento da democracia na região. O êxito da oposição aqui fortaleceria a direita em todo o continente, e abriria o caminho para novos ensaios golpistas como os que vimos ainda há pouco no Equador. A vitória de Dilma encerra a promessa de avanços significativos em ambas as direções. Mas seu significado pleno só fica evidente quando levamos em conta o enorme retrocesso que ela evitou.

E não é só isso. Essa oposição, muito enfática na denúncia, não fez o dever de casa e nunca desenvolveu uma concepção estratégica sobre o papel do Brasil no mundo.

Ora, contrariando as expectativas ingênuas criadas pelo fim da Guerra Fria nos bem pensantes, o mundo no século XXI tornou-se um lugar interessante, mas perigoso. Crises financeiras, violência terrorismo, guerra... são faces distintas do perigo que nos cerca. Em 2008, a crise financeira global levou os níveis de incerteza a um patamar bem mais elevado. Em meio às turbulências de um mundo assim, a clareza de objetivos, a noção precisa do rumo a seguir, e a coragem para avançar são bens inestimáveis. Na preservação desse patrimônio está o significado maior da vitória de Dilma para o Brasil e sua política externa.


Fonte: www.zedirceu.com.br

segunda-feira, 22 de março de 2010

Como estar à altura de nosso papel histórico?


O déficit da esquerda é organizacional



*José Paulo Netto

Para os revolucionários inscritos na tradição marxista colocam-se atualmente problemas inteiramente novos. Não é a primeira vez que, nos últimos cento e cinqüenta anos, uma conjuntura deste tipo se instaura (nem será, talvez, a última). Mas, certamente, nenhuma das conjunturas anteriores revestiu-se da dramaticidade com que se apresenta a situação atual.

Com efeito, o exaurimento de todas as possibilidades civilizatórias do capital alcança hoje um nível tal que a manutenção, ainda que seja por uns poucos decênios, da ordem capitalista implica um grau de violência e barbarização que tornará inviável a sobrevivência da humanidade (o desastre ecológico é apenas um signo, embora crucial, das perspectivas horrorosas que se põem a médio, senão a curto, prazo). E isto se dá na quadra histórica, emergente na transição dos anos 1970 aos 1980, em que o projeto revolucionário fundado em Marx (e, de fato, o processo revolucionário real que tomou sua primeira forma na Revolução de Outubro) registrou derrotas históricas de larga incidência.

Em poucas palavras: nunca foram tão ameaçadoras as perspectivas imediatas da vida da humanidade e, simultaneamente, nunca o movimento revolucionário inspirado em Marx viu-se diante de tantas dificuldades. Precisamente por isto, vale a pena provocar a imaginação com um breve exercício de polêmica: nosso – dos revolucionários – déficit não é teórico, é organizacional.

A potencialidade teórica do marxismo

É enorme a bibliografia sobre as crises do marxismo e, sem prejuízo de observações pertinentes que nela se encontram, quase toda possui um denominador comum: identifica a crise de uma ou outra vertente da tradição marxista (que, de fato, é um acervo ídeo-teórico e político muito diferenciado) com a crise do marxismo. Se houve, e de fato houve, uma paralisia no desenvolvimento da tradição marxista no segundo terço do século XX(...), paralisia que compeliu Lukács a reclamar, nos anos 1960, um “renascimento do marxismo”(...).

Mas, marginalmente ao marxismo-leninismo e após a denúncia do “culto à personalidade” (1956), outras vertentes marxistas se desenvolveram (ou continuaram se desenvolvendo) e constituíram um acúmulo ídeo-teórico capaz de propiciar um conhecimento social adequado. Um exame cuidadoso da documentação produzida por marxistas de diferentes matizes, a partir dos anos 1950, revela a emersão de um estoque crítico que, depois dos anos 1970, só fez crescer. Ao contrário do que sustenta o senso comum das ciências sociais acadêmicas e do que é veiculado pelos meios de comunicação social, a elaboração teórica de extração marxista tem se revelado capaz de análises extremamente corretas (ou seja: validadas pela dinâmica social real) dos processos histórico-sociais dos últimos trinta anos. Não é este o lugar para oferecer provas bibliográficas desta afirmação, mas basta cotejar, por exemplo, a visão da dinâmica econômico-social do sistema capitalista nos últimos vinte e cinco anos oferecida por diferentes teóricos marxistas (Mandel, Mészáros, Chesnais, Husson et alii) com aquela traçada pelos apologistas do capital para aquilatar da atualidade e da atualização da capacidade heurística do referencial analítico elaborado originalmente por Marx.

É evidente que este efetivo desenvolvimento de vertentes da tradição marxista está longe de significar que inúmeros complexos problemáticos, que peculiarizam a atual quadra histórica, estejam minimamente equacionados. Há toda uma série de níveis societários - no plano da cultura, no espaço da vida cotidiana, no campo das relações entre ciência e ética, nos domínios da demografia, da territorialidade etc. – em que se acumulam dilemas e impasses sobre os quais o estoque de conhecimentos é extremamente assimétrico em comparação à sua magnitude. As lacunas teóricas existentes são indiscutíveis e não há por que dissimulá-las. Mas, ainda aqui, cumpre sublinhar que carências crítico-cognitivas de monta afetam o conjunto das teorias sociais contemporâneas e são imensamente mais expressivas no campo dos saberes funcionais à ordem do capital – que, no plano teórico-social, mostra-se cada vez menos apta a engendrar concepções que resistam às fortes tendências constitutivas do que Lukács, na esteira de Marx, designou como “decadência ideológica”.

Com estas considerações - necessariamente breves e esquemáticas -, o que pretendo ressaltar, com ênfase, é que as dificuldades com que se defrontam hoje os revolucionários que se reclamam vinculados à tradição marxista não derivam essencialmente de uma “crise teórica”. A potencialidade teórica da tradição marxista tem resistido à prova da história.

Teoria e política

Em alguma passagem de seus escritos, P. Togliatti anotou: “quem erra na análise, erra na ação”. A observação é crucial para os revolucionários (como, aliás, já o sabia Marx): para aqueles que se propõem como tarefa a supressão da ordem do capital e a ultrapassagem da sociedade burguesa, o conhecimento verdadeiro da realidade social é, como Lukács esclareceu desde 1923, uma questão de vida ou de morte. Isto equivale a dizer que, para os revolucionários, a formulação de projetos e o estabelecimento de estratégias no marco das lutas de classes supõem o máximo conhecimento possível da dinâmica social concreta.

Esta determinação, que parece incontestável, requer três notações minimamente convalidadas pela experiência histórica. A primeira é que tal determinação diz respeito àqueles que se empenham na superação da ordem do capital – a manutenção e a gestão desta ordem reclamam, obviamente, conhecimentos e saberes; entretanto, a natureza destes pode ser meramente manipulatória e instrumental; já o empenho exitoso na desarticulação da sociedade burguesa no rumo das transformações socialistas exige o conhecimento teórico rigoroso da estrutura e da dinâmica da vida social. Em segundo lugar, ela se refere aos segmentos dirigentes dos movimentos revolucionários – a elevação do nível de consciência das massas, sempre potenciado nas lutas e em especial nas conjunturas revolucionárias, não elimina a efetiva fronteira distintiva (sempre móvel) entre elas e as suas vanguardas. Finalmente, é preciso lembrar que nenhum processo revolucionário se deflagra contando com um conhecimento teórico exaustivo e total das suas possibilidades e limites – se assim fosse, certamente a história moderna não registraria nenhuma revolução.

É necessário acrescentar, porém, que aquela determinação - quem erra na análise, erra na ação – está longe de significar que quem acerta na análise tem êxito na ação revolucionária. Para os revolucionários, o acerto na análise (vale dizer: um acúmulo crítico que garanta o máximo conhecimento possível da realidade social) é condição necessária para o êxito da intervenção política, mas não é condição suficiente. A política (revolucionária) não se reduz à teoria (revolucionária) ou, mais exatamente, a política não é teoria.

Na tradição marxista, foram freqüentes os equívocos derivados de uma interpretação simplista da decantada “relação entre teoria e prática”, que não poucas vezes conduziram - confundindo unidade com identidade – a desastres simultaneamente teóricos e políticos. Por isto mesmo, é preciso afirmar com vigor que teoria e política configuram âmbitos distintos, mesmo que não divorciados, na totalidade das formas pelos quais os homens e as mulheres procuram compreender e transformar o mundo. No âmbito da teoria, o conhecimento verdadeiro é um fim; no âmbito da política, o conhecimento é um meio 3. Na teoria, importa a verdade; a política é o campo das relações de força. As conexões entre teoria e intervenção política não são unívocas nem diretas, até porque suas dinâmicas são estruturalmente diversas - a temporalidade da ação política não é a da elaboração teórica (antes, é reiteradamente emergencial).

Nada disso aponta no sentido de subestimar o peso do conhecimento teórico na intervenção política revolucionária – ao contrário, decorre desta linha de argumentação a conseqüência da mais exigente qualificação das vanguardas e de seus representantes mais destacados, notadamente quando se verifica que, no decurso do tempo, esta qualificação veio registrando uma curva descendente4. Mas, sem qualquer concessão a um weberianismo ocasional, se se constata a existência de “duas vocações”, a teórica (científica) e a política, que não se excluem, mas que, se não coincidem necessariamente nas mesmas figuras (como, para citar tipos diversos, em Lênin, Mariátegui, Togliatti, Cunhal), há que dizer que elas podem articular-se no “intelectual coletivo” que as vanguardas organizadas devem estruturar.

Esta argumentação, porém, aponta num sentido preciso (e obviamente polêmico): não são as lacunas teóricas que estão na raiz das dificuldades políticas com que se vêem a braços os revolucionários de inspiração marxista. A paralisia que enfermou a vertente teórica dominante da tradição marxista ao tempo do stalinismo (o marxismo-leninismo oficial), bem como outros esclerosamentos, certamente foi um componente ponderável a embaraçar o desenvolvimento do movimento revolucionário – que, por outro lado, nunca se reduziu aos processos de transformação social substantiva direcionados por vanguardas de corte marxista. O insuficiente conhecimento de que esta tradição dispõe sobre vários domínios da vida social contemporânea decerto incide negativamente na potenciação de vetores revolucionários. Nada disto, todavia, é o determinante essencial das dificuldades atuais - até porque, como se referiu, a massa crítica produzida nos últimos trinta anos, no marco da tradição marxista, está longe de ser negligenciável. O determinante essencial parece residir na problemática da organização política dos revolucionários.

O déficit da organização política

A passagem de Lenin é conhecida à exaustão: “sem teoria revolucionária não pode haver também movimento revolucionário” – mas nem sempre se leva em conta que ela vem inscrita num texto (Que fazer?) em que o futuro líder da Revolução de Outubro está tematizando, centralmente, o problema da organização política. Não me parece adulterar sua tese interpretá-la como exigindo a referência teórica (que, para ele, estava dada: o marxismo) para que a organização política (o partido) pudesse direcionar o processo revolucionário na Rússia czarista - mas a centralidade, no processo revolucionário, cabe à organização e à direção política.

Recordemos que o texto lenineano (fundante de um partido novo) inscreve-se nas polêmicas que se travaram num arco temporal que pode ser claramente delimitado: o período que vai do Bernstein-Debatte (a segunda metade dos anos 1890) até a elaboração

trotskiana do Programa de transição (às vésperas da Segunda Guerra Mundial). Aí se compreendem a crise da Segunda Internacional, a Revolução de Outubro, o fracasso da revolução no Ocidente, os giros da Terceira Internacional, a emersão do fenômeno stalinista etc. As riquíssimas polêmicas dessas quase quatro décadas tiveram sempre, explícita ou tacitamente, a centralidade da organização política (as vanguardas e sua relação com as massas) como elemento constitutivo. Todos os confrontos, colisões, divergências etc. - expressando decerto diferenças nas concepções teóricas - relacionavam-se à problemática da organização política. Elas são nítidas nas formulações (e práticas) de Kautsky, de R. Luxemburgo, de Lênin e mesmo de Trótski e Bukharin, apenas para referir os seus protagonistas mais conhecidos5. Depois deste período de polêmicas, praticamente não se introduziu nada de novo nos elementos nelas contidos.

A recorrência a tais polêmicas e, igualmente, às soluções que nelas foram propostas é, obviamente, de capital importância para enfrentar as dificuldades atuais. E, sendo procedente a hipótese com que aqui se trabalha, segundo a qual o “núcleo duro” dessas dificuldades radica na problemática da organização política, de tanto maior relevo se reveste a análise daquelas polêmicas e das implicações práticas das soluções nelas aventadas.

Todavia, e este é o ponto que me interessa salientar, a análise crítica dessa herança do movimento revolucionário, realizada com o estudo da experiência histórica do período que lhe corresponde (que tanto condicionou aquela herança quanto foi por ela modificada), pouco pode contribuir para romper com os nós que embaraçam hoje a atividade revolucionária. Com certeza, a meu juízo, essa análise reafirmará seja a indispensabilidade do máximo conhecimento possível da realidade social, seja a centralidade da organização política – mas não nos dirá nada acerca das formas concretas dessa organização nem sobre a sua articulação com instâncias e sujeitos sociais. Para ser bem claro: a análise crítica daquele legado haverá somente de nos indicar, à exceção dos dois constitutivos acima mencionados (o conhecimento e a organização política), a que herança devemos renunciar. Extrairemos, por exemplo, lições de Rosa Luxemburgo (quando alertava que a ditadura do proletariado poderia se tornar uma pura e simples ditadura) e de Trótski (quando denunciava/analisava a burocratização) - mas não extrairemos elementos positivos para uma refundação político-organizacional.

De fato, os dois constitutivos que deverão estar presentes para que se possa promover uma ofensiva socialista expressam os elementos universais do processo revolucionário conducente à superação da ordem do capital. Mas a sua particularização conseqüente com a quadra histórica contemporânea supõe e implica uma concretização para a qual a experiência passada pouco pode contribuir. Os problemas inteiramente novos, a que me referi na abertura desta rápida comunicação, escapam ao âmbito próprio daquela experiência – que, entretanto, permanece ainda como a referência básica do movimento revolucionário.

Um mundo novo

A constatação pode ser acaciana, mas deve ser repetida: as transformações societárias que se explicitaram nos últimos trinta anos configuraram um mundo novo.

A análise deste mundo revela que a teoria social de Marx é completamente atual: o modo de produção capitalista, em todas as diversas formações sociais existentes, obedece à dinâmica que foi idealmente (teoricamente) reproduzida n’O capital: exploração do trabalho, crescimento destrutivo e autodestrutivo, concentração e centralização de riqueza e poder, contradições e antagonismos etc., com toda a sua coorte de conseqüências deletérias no plano sócio-cultural e humano. A análise marxista do capitalismo contemporâneo, registrando novos fenômenos e processos - e esta análise vem sendo feita -, não infirma nenhuma das descobertas estruturais de Marx; mas revela que elas não dão plena conta das determinações novas desse capitalismo. Esta análise demonstra que as determinações teóricas de Marx, estruturalmente válidas, não são, apenas elas, suficientes para apreender o capitalismo dos nossos dias.

O desenvolvimento recente deste capitalismo introduziu profundas mutações na sociabilidade própria à sociedade burguesa. E se não afetou as bases da pertinência de classe (a propriedade) e se, menos ainda, reduziu a gravitação das lutas de classes no processo social, alterou substancialmente as modalidades pelas quais a estrutura e o movimento daquela sociabilidade são tomados pela consciência de homens e mulheres. As transformações na vida cotidiana (na constelação familiar, no espaço da reprodução imediata dos indivíduos etc.), na distribuição espacial dos indivíduos e grupos sociais, na organização e na repartição do tempo de trabalho, no controle do tempo fora do trabalho, os novos mecanismos de manipulação ideológica, seus impactos sobre os costumes – tudo isto, e muito mais, alterou qualitativamente as condições de constituição da consciência da massa dos homens e das mulheres.

É somente a partir da consideração desse mundo novo - e os traços dele aqui esboçados já se encontram minimamente estudados - que se pode intentar, de modo sério, encontrar soluções conducentes à criação de instrumentos de organização política eficazes para operar uma ofensiva socialista. Porque, e esta é uma determinação essencial, se as dificuldades que embaraçam a atividade revolucionária são notáveis, igualmente notáveis são as motivações reais que permitem a mobilização e a organização de largos contingentes de homens e mulheres contra a ordem do capital. Em todos os quadrantes, do Norte ao Sul, o capitalismo contemporâneo enfrenta uma insatisfação generalizada e uma resistência ora difusa, ora ganhando expressões corporativas e particularistas. Molecularmente, a ordem do capital tem exponenciado os seus coveiros - mas este movimento real permanece espartilhado nos limites da ordem porque carece de instâncias universalizadoras.

E estas não serão criadas somente a partir da análise crítica da experiência anterior do movimento revolucionário. O mundo novo requer, também, invenção.

A invenção de um novo padrão organizacional

Lênin não foi citado por acaso nas páginas anteriores. Também ele se situa, historicamente, num momento de inflexão do capitalismo (a emergência do imperialismo) e também para ele se punha um problema específico: encontrar um instrumento que tornasse interventiva a referência teórica de Marx. E Lênin inventou esse instrumento: o partido novo.

Cuidemos de evitar mal-entendidos. Lênin – de quem, em 1924, Lukács salientava o realismo e o antiutopismo – não inventou o partido arbitrariamente, mediante simples volição individual (também esta invenção respondia a possibilidades históricas concretas). Ele não só dispunha de uma análise concreta da formação social para a qual dirigia suas energias (recorde-se O desenvolvimento do capitalismo na Rússia) e de um substantivo conhecimento das experiências (anteriores e contemporâneas) dos movimentos revolucionários: incorporava criticamente os desdobramentos da teoria e da ciência que lhe eram contemporâneas6. E mais: assimilava sem preconceitos o que havia de válido na reflexão alheia, desenvolvia pistas referidas por outrem, inscrevia-se num debate coletivo e dava formulação rigorosa ao que nele emergia.

É deste tipo de invenção que o movimento socialista revolucionário de inspiração marxista necessita hoje. O conhecimento da herança já referida (de que Lênin é parte importante, mas não única) é, como sublinhei, indispensável para realizá-la – mas está longe de ser o bastante. Essencialmente, a invenção de um novo padrão político-organizacional e a formulação de seus parâmetros, que permitam direcionar para um processo revolucionário as generalizadas insatisfações e resistências em face da ordem do capital será resultado de uma elaboração coletiva, capaz de incorporar a massa crítica de que já dispomos sobre o capitalismo contemporâneo e de apreender as/responder às formas atuais da sociabilidade. Será uma tarefa muito mais complicada que a realizada por Lênin – devendo conjugar, num registro antes desconhecido, a teoria revolucionária atualmente acessível com demandas muito diferenciadas e pulverizadas. Mas é esta mesma conjugação que poderá unificar (sem identificar, com a diluição das suas especificidades) tais demandas, situando-as numa perspectiva universalizante que supere particularismos e corporativismos. E trata-se de tarefa factível desde que, aproveitando as lições do passado, deixemos de tomá-las como exemplos – e este é, como diria o velho Florestan, o buzílis da questão: a incontornável referência à herança não pode hipotecar a experimentação necessária.

Num ensaio de mais de vinte anos, Perry Anderson observava, com a sua conhecida argúcia, que o chamado marxismo ocidental tinha como traço pertinente o nunca haver conseguido vincular-se a movimentos de massa. Sem exagero, quer-me parecer que, nos dias correntes, o problema não reside em o marxismo tout court estar desvinculado de movimentos de massa - o problema está em que movimentos de massa são raros.

A invenção de um novo padrão de organização política, se, de um lado, é condicionada pela existência desses movimentos, de outro pode fomentá-los e torná-los mais densos.

Não é possível sequer prospectar se e quando uma tal invenção terá lugar – ainda que, para ela, estejam dados muitos elementos. Mas, salvo grave erro de avaliação, é possível concluir assegurando que da ultrapassagem deste nosso déficit organizacional depende, em escala decisiva, a possibilidade de travar e reverter a barbárie capitalista.

*José Paulo Netto é professor titular da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro.